terça-feira, 28 de julho de 2009

Supermercado

(Rio de Janeiro, 22 de novembro de 2007)

Hoje eu acordei mais cedo do que de costume. Saí e fui ao supermercado, o lugar onde se adquire ilusões a varejo. Precisava fazer compras...

Comprei minhas conversas em lata, meus sonhos em conserva e meu sorrisos instantâneos: três minutos na água quente, sabores amarelo, forçado ou sem graça. Renovei meus estoques de educação a metro, de boas maneiras. Tomei um purgante para poder engolir sapos de maneira mais eficiente.

Na sessão de produtos de limpeza arrumei mais caras de paisagem por um bom preço. Elas são úteis, tem mil e uma utilidades. Olho para a placa acima de meu nariz. “Cama, Mesa e Banho”, ela diz.

Esta é a mais interessante! Por incrível que pareça, achei uma colcha de retalhos com todas as impressões pré-fabricadas que eu necessito para viver em sociedade. Estava estafado depois de uma manhã inteira fazendo compras. Naquele mercado se vendia tudo... Mas houve uma coisa que eu não consegui achar.

Dirigi-me ao funcionário mais próximo e perguntei: “Onde eu encontro esperança?”. Resposta? Silêncio.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

A Fuga

(Rio de Janeiro, 22 de julho de 2009. 2a edição)

A prisão enorme estava quase vazia. Seus pouquíssimos detentos, que podiam ser contados nos dedos das mãos, escolheram ficar todos no mesmo pavilhão, pois assim não se sentiam tão sós. Na prisão não havia grades nem (aparentemente) funcionários e - embora não soubessem explicar como - parecia totalmente automatizada, regida quase por um passe de mágica.

Na hora de sempre as celas foram abertas e os prisioneiros puderam sair para o banho de sol. Chegando ao pátio - que mais parecia um bosque com suas árvores copadas, seus arbustos e a grama alta, fofa e muito verde - sentaram-se à sombra de uma macieira. Um deles, ainda de pé, olhou para cima e franziu o queixo, balançando a cabeça satisfeito.

- É... Eu tinha razão, são 10 horas da manhã! - O homem parecia um inglês: muito alto e magro, o cabelo preto penteado para trás com gel e orelhas de abano. A pele era de um branco quase cadavérico, exceto nas bochechas e no nariz, vermelhos.

- Ah, isso de novo! - Bradaram dois ou três em sinal de protesto.

- É claro que estou certo, ora! Quem de vocês é melhor nisso do que...

- Do que você, Soberba! Tenho fé que um dia você mude. - Disse a jovenzinha simpática com trajes colegiais, interrompendo o companheiro.

Uma mulher de óculos e trejeitos desengonçados cutucou o ombro da menina com a ponta da unha, evitando maiores contatos, e a interpelou.

- Esperança, mas e se Soberba estiver certo? - Fez uma pausa e gaguejou antes de continuar - Pegar sol depois das dez pode nos dar uma insolação. E pior! Nós pegamos sol todos os dias nesse mesmo horário, podemos desenvolver um câncer de pele, ouviram bem?

O tom dela já beirava o desespero.

- Câncer de Pele!

Sem mais nem menos um homenzinho careca e barrigudo como um duende começou a saltar e dançar em volta dos outros, assobiando uma melodia alegre.

- O sol do Cão/ Dá insolação/ E o que nos impele/ É o câncer de pele!

A mulher o questiona, totalmente dominada pelo pânico.

- Como você pode ignorar algo assim? Não vê que pode morrer? Paixão, Vício... Alguém diga para ele!

- Por que está estranhando algo assim, mulher? - Perguntou Vício acendendo folhas com um fósforo - Loucura é o único que não se importa com você, Doença!

- Será que podemos parar com isso? - Gritou de maneira afetada uma jovem loira, alta e muito bonita que usava óculos escuros o tempo todo.

- Tudo bem Paixão, mas seja mais paciente... Não é como se algum de nós tivesse mesmo horários a cumprir - argumentou Esperança.

Paixão não olhou para ela. Apalpou o gramado e só então se virou mais ou menos na direção da menina.

- Eu, dada minha natureza, sou fugaz, impulsiva. Não sei esperar... - Ela sorriu, marota, e mexeu em seus óculos - E sou cega!

Os presos se sentaram no gramado e o sol quente os iluminou a todos. Comeram maçãs do pé (Loucura preferia a casca e, especialmente, os bichos), colheram flores e papearam despreocupadamente, como sempre faziam.

Quando todos se reuniram novamente, a menina Esperança lançou um questionamento que havia muito a inquietava.

- Por que eu estou aqui? Quando vão me libertar?

Os outros se entreolharam, com a exceção de Loucura, que parecia alheio à conversa. Depois de um tempo em silêncio, Soberba se manifestou.

- Nem eu sei exatamente, querida. Como uma coisa tão boa pode estar entre nós é um mistério até mesmo para mim, seguramente o mais capacitado aqui para lhe responder.

- Talvez nós tenhamos alguma coisa contagiosa ou algo assim! - Doença parecia eufórica agora - Se eu bem me lembro, eles nos trancaram aqui faz muito tempo e disseram que só assim as pessoas lá fora viveriam felizes.

- É verdade! Eu já nem me lembrava mais, quanto tempo tem isso? Eu já não sei. Mas o fato é: não há meio de sair daqui. Antes de você, a mais nova entre nós, chegar aqui, já havíamos tentado de tudo, mas nada parecia adiantar. Lá fora só há o vazio e por mais que caminhássemos sempre acabávamos voltando para cá. - Paixão mostra uma estranha serenidade.

- Mas tem que haver um jeito! Eu não acredito que vocês possam desistir assim. Vou pensar em alguma coisa...

Eles continuaram suas rotinas monótonas até anoitecer. Esperança, durante todo o restante do dia, estava meditativa e os outros não quiseram importuná-la em sua cela. Chegou a hora do jantar; todos já estavam reunidos no refeitório comendo uma sopa de repolho quando a menina entrou ofegante e visivelmente alterada.

- Eureka! Eureka! Eu já sei o que devemos fazer! - Ela segurou nas mãos de Loucura, que estava de pé, e os dois rodopiaram como em uma cantiga de roda.

- Mas se nem eu consegui encontrar uma solução, como você poderia? - Perguntou Soberba intrigado.

- Isso é porque sempre mentiram para você assim como mentiram para mim e para todo mundo! Mas agora eu sei a verdade!

Todos fitaram a menina com grande expectativa. Nem precisaram perguntar a resposta para aquele terrível enigma que os ocupou em vão por infindáveis tardes, pois ela começou a falar novamente.

- Sempre nos disseram que enquanto há vida, há esperança, certo? Mas é justamente esse o nosso grilhão! Nós não precisamos de guardas porque estamos presos a esse monte de carne! Nossa cela somos nós mesmos!

A confusão era flagrante: Soberba coçava a cabeça, Paixão deixou seus óculos caírem, Vício - glutão compulsivo - parou de comer. Doença foi a única que teve coragem para seguir adiante.

- Continue... - Disse para a garota, já roendo as unhas de ansiedade.

- Meu plano é o seguinte: todos nós nos matamos e eu tenho certeza que sairemos daqui. Como fantasmas, atravessaremos essas paredes e viveremos o mundo a nossa volta!

- Mas e se der errado? E se estivermos jogando nossa vida fora em vão? Não temos nenhuma garantia... - Paixão contrapôs-se falando alto, irritada - Pode não parecer, mas eu gosto mais de mim do que de qualquer outra coisa e não quero arriscar meu lindo pescocinho por uma idéia maluca!

- A única garantia que nós temos é esse castigo eterno...

A menina então deixou o local e ninguém disse mais nada até o banho de sol no dia seguinte. Todos eles foram procurar Esperança.

- Bom, menina... Esperamos que você tenha razão, porque nós concordamos! - Soberba falou em nome de todos - De fato nenhum de nós aguenta mais ficar aqui e nem merece estar cativo só pelo fato de existir.

- Muito bem, então. Vício, você que cavuca esse jardim o tempo todo, sabe se tem alguma planta muito venenosa aqui?

- Sim, minha cara! - Seus olhos brilharam em alegria e êxtase - temos aqui uma fruta parecida com uma pêra, só que roxa. A fumaça da sua casca dá o maior barato, mas comê-la é morte certa e instantânea.

A partir daí tudo aconteceu muito rápido. Vício colheu as frutas como deve ser e, sentados em círculo, eles se prepararam para o ato fatal. Antes, contudo, Esperança disse as últimas palavras.

- Muito bem, meus amigos! Já é hora, deixaremos a vida para encontrar um lugar no mundo. A morte não representará um fim, mas sim um meio e a eternidade será nossa guia.

Comeram.

Em instantes, Paixão, Vício, Doença e Soberba caíram. As bocas fumegando o roxo da morte. Com os olhos cheios d’água, Esperança perguntou para Loucura.

- Por que não funcionou para nós? Isso não é justo! - A menina coçava os olhos.

- Bom, tudo que sei é que não há loucura na morte. E falando em morte, você deveria saber que seria a última a morrer, não?

Ele se levantou e caminhou até Esperança. Em seguida, enxugou seus olhos e beijou sua testa. Não parecia mais o bobo imprevisível de antes; agora exibia uma sabedoria e um mistério que ela nunca sonhara em ver naqueles olhos cor de avelã. Apontou para o portão da cadeia, que estava aberto. Emanava uma luz dourada da passagem e o som de mil trombetas cruzava o ar. Loucura apontou para ele.

- Olhe, Esperança! Lá se vão nossos amigos.

A menina se beliscou para ver se não estaria sonhando. Todos eles, pouco antes de cruzarem aquela que seria a fronteira final, deram seu último adeus e, em seguida, viraram uma nuvem multicolorida que mais parecia a aurora boreal.

- O que está acontecendo, Loucura?

- Do pó viestes, ao pó voltarás... Também é assim conosco. Mas não pense que esse é o fim deles, minha princesa. Eles estarão presentes em tudo que é vivo daqui para frente. Não serão um, mas todos! Agora eu tenho que ir, esperei esse dia por muito tempo...

Loucura começou a caminhar para o portão. Esperança ficou imóvel por um tempo, mas logo que retomou a consciência correu atrás dele e começou a falar apressadamente.

- Pera aí, você não morreu! Não pode ir!

Ele parou, virou-se para ela e afagou seus cabelos macios. A menina o abraçou, seu rosto tomado de lágrimas batia na barriga do amigo.

- Por favor, não me deixe! Eu não quero ficar aqui sozinha! Tudo menos isso!

Ele parou por um tempo para pensar e então falou na altura do ouvido dela. Não mais que um sussurro saiu de sua boca.

- Vou te contar um segredinho... Eu não estou vivo nem morto. Eu sou o limiar entre vida e morte... Lembra do vazio sobre o qual falaram ontem? O lá de fora!

Esperança fez que sim com a cabeça.

- Aquele era eu. Eu poderia levá-la, mas você tem que ficar aqui. Isso não será mais uma prisão, mas sim um relicário. As pessoas vão precisar de alguém em quem se apegar daqui para frente e essa é você. Vão lhe chamar por muitos nomes e fazer muitas coisas em sua defesa, boas e más. Mas quando eles dormirem, quando eles rezarem, quando eles sonharem acordados... Não importa, é você que eles virão visitar. Mantenha a casa em ordem, ok?

Dito isso, ele saiu. Ao contrário dos outros não se desfez: atravessou o portão, deu mais um passo e olhou para trás, em direção à placa afixada no pórtico acima.

Estava escrito: "Caixa de Pandora - Abandonai toda a esperança, você que entra".

Loucura riu, sabendo que só ele podia apreciar a ironia.


***

Sobre "A Fuga"

Foi bem engraçado escrever esse conto, porque ele foi uma verdadeira antítese da maneira com que eu costumo construir minhas histórias. Tudo começou lendo o conto "A vez de outubro", do Neil Gaiman, cujos personagens são os meses do ano. Achei verdadeiramente encantador e pensei: por que não usar representações antropomórficas também?

Alguns dias depois, navegando pela Wikipedia (meu vício!) fui parar num artigo sobre a caixa de Pandora e tive certeza de que essa era A história a se contar. Como fazer era muito vago: sabia que o cenário seria uma prisão que representaria a caixa, que os sentimentos nela contidos seriam personagens e que, no final, a Esperança deveria ficar.

A escolha dos "personagens" também não foi aleatória. Pensei primeiramente que Loucura poderia ser uma espécie de Profeta Gentileza, que teria um jeito todo próprio de se expressar, embora no fim das contas ele tenha sido mais um Gandalf do que isso. Doença e Soberba eram, sobretudo, o alívio comigo que ajudaria na empatia com aquele grupo e os demais me pareceram bastante representativos também.

Curiosamente, minha idéia inicial era que nossos amigos conseguissem escapar sozinhos, sãos e salvos, mas empaquei no primeiro terço de história durante quase duas semanas, até que um belo dia resolvi que acabaria de um jeito ou de outro, por consideração aos personagens. Veio a fagulha de brincar com a máxima "enquanto há vida, há esperança" e que aconteceu depois é história.

Foi muito prazeroso trabalhar com esses personagens, pois é muito mais difícil caracterizá-los do que a pessoas comuns. Exatamente por não serem humanos eles não podem ter a mesma profundidade, no meu modo de ver. Teriam que ser, de certa forma, estereótipos inteligentes (se é que isso é possível). Aí vieram associações bobas como Paixão cega, um Soberba feio ou uma Esperança jovem e suicida. Pretendo voltar a trabalhar com alguns desses personagens de novo um dia, acho que ainda há algumas coisas para contar sobre eles.

É isso, gente! Até breve!