quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Canção do Exílio

Colocaram-me uma arma na fronte
E me empurraram para dentro de um avião
Minha vida pela janela, lá longe...
Exilado do meu coração.

Exilei-me da minha casa
Minha família, minha felicidade
Mas de tudo que me foi negado
É de mim mesmo que sinto saudade

Se o que resta é ir embora
Mudar para não ser mudado
Já adianto, não se espante

Não espero mais um instante
E não me farei de rogado
Errado ou não, o tempo é agora.

sexta-feira, 4 de setembro de 2009

O Sonho de Henrique

Escalou mais muros e superou obstáculos, chegando a uma laje indistinta. Viu então que os homens dirigem para rua aonde mora e, num ato de bravura, ignora a voz ameaçadora do monstro de aço e segue para lá. Os homens que pareciam um só batem e xingam um rapaz conhecido que morava ao lado de casa; os vizinhos se enfurecem e tentam salvá-lo. Lá estavam seu pai, sua mãe e poucos mais em busca de misericórdia para um inocente.

Os apelos são calados por uma rajada de fogo e ódio; o monstro comia gente e conseguiu mais alguns quitutes macabros. Henrique chegou enquanto os homens deixavam a rua. "Os meliantes agrediram a tiros as forças da lei", um deles disse para um repórter, "e depois de encurralarem nossos bravos colegas foram baleados por nós".

"Mas nenhum de vocês se feriu?", interpela o pequenino jornalista. A resposta cínica nunca sairia da mente do menino: "isso mostra que as forças da lei são treinadas para superar qualquer marginal".

A última coisa que viu foi o pai segurando com dificuldade a mão de sua mãe. Ambos se foram, deixando-o sozinho.

Henrique acorda, abre os olhos com dificuldade. O sangue espesso lhe escorre pelo ombro ferido e ele não consegue mais segurar a metralhadora. Dez anos se passaram desde que seus pais se foram e ele dedicou cada dia a agredir e se vingar daquelas pessoas do asfalto que só apareciam para matar e prejudicar seus companheiros de morro.

Sentiu um coturno de couro atingir-lhe o peito e largou o corpo contra o chão. Estava cansado de lutar, de dar murro em ponta de faca como o pai dizia. Não pediu que lhe poupassem, apenas fitou com ódio os olhos do policial que se abaixava à frente e cuspiu-lhe saliva, sangue e mágoa bem no rosto.

Foram três tiros à queima-roupa. Antes de apagar ouviu seu algoz comentar: "o marginal foi ferido depois de agredir as forças da lei a tiros"... Morreu com a certeza de que a sua história, que era de tantos outros, se repetiria todos os dias. O dejà vú coletivo de violência.

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Clarissa e o Caminho para o Fim do Mundo - Parte 1

Era só mais um fim de dia comum na vida de Clarissa. Ela volta para casa sem pressa, como quem já não quer chegar. Já são quase 11 da noite, mais tarde que o de costume porque teve de ajudar dona Gertrudes no balanço da livraria. E não se importava com o serão, pra falar a verdade.

A jovem para por um instante ao se ver no espelho do corredor do prédio. Está quatro ou cinco quilos acima do peso; já tem 19, mas as feições um tanto quanto pueris mostram que ela ainda aguarda seu desabrochar.

Como sempre, a primeira coisa que faz ao entrar é colocar a comida do cachorro, sua única companhia no quarto-e-sala diminuto. O bichinho faz festa, Clarissa o presenteia com um afago não mais que protocolar e ambos vivem felizes assim. Em seguida, come um pouco de salada contra a vontade, pois as verduras já estavam queimadas e com “gosto de geladeira”, aquele sabor característico das coisas que já deveriam ter ido para a lata do lixo.

Preocupava-se em levar uma vida saudável, mas alimentava um vício: o café. Clarissa não dorme muito. Cada viagem pelo onírico tem sido pior que a anterior, reservando apenas pesadelos repletos de terror e imagens sem sentido, por isso o líquido negro – forte e doce como ela apreciava – era seu elixir na luta contra os braços de Morfeu. Da mesma forma, costumava beber mais do que o aconselhável, uma vez que a embriagues parecia expulsar seus demônios interiores temporariamente. Tinha bem poucos amigos, três deles – Johnny Walker, Jack Daniels e José Cuervo – estavam à vista sobre a mesa de canto. Entretanto, ela escolheu não beber. Não havia tempo para curar uma ressaca, concluiu, era melhor deixar estar.

Resolveu, não antes de acalorados debates consigo mesma, pensar no que fazer a seguir. Queria desenhar quadrinhos, mas o caminho mais fácil era cursar administração e trabalhar no escritório com o pai. Pensou também em mochilar, viver de parada em parada colhendo estórias para os livros que, sabia, jamais iria escrever. Olhou para o relógio em forma de Garfield na parede, que já anunciava um novo dia com seus ponteiros cor-de-abóbora. A partir deste instante a menina de olhos de mel só lutava, fugindo insistentemente do inevitável. Não sabe em que momento seus olhos se fecharam, tampouco quando sua mente se abriu às perversões de sabe-se lá o quê. Era o seu pior e mais frequente pesadelo se repetindo uma vez mais...

Ela estava amarrada a um mastro ou algo que o valha e um homem vestido em sombras lhe açoitava sadicamente. Clarissa sentia os espinhos entrando como dentes em seu corpo, levando punhados de carne e sangue a cada novo golpe, mas aquela não era ela - ou melhor, nem era uma mulher – pois podia sentir, completamente nua como estava, as volumosas bolas e o cacete enorme e duro como aço – que parecia excitado com aquilo tudo – balançando por conta do impacto das agressões. O vulto maligno, não mais que uma silhueta na luz do poente sombrio, vociferava injurias variadas e lhe chamada de “Senhor dos Embustes” e “Pai de Todos os Estratagemas” e “Ardil Encarnado”.

Acordou sobressaltada, como se emergisse depois de quase se afogar. Desta vez, notou a calcinha molhada por baixo da camisola e o fato de quase ter chegado ao orgasmo com aquele sonho terrível e enigmático levou-lhe às lágrimas, num misto de asco e autopiedade. Não conseguia denotar onde um sentimento acabava e outro começava, mas sentia-se imunda e patética.

Tomou uma ducha rápida e gelada, esfregando seu sexo até quase ferir-se. Saiu, úmida naquele dia frio, e parou nua em frente ao espelho. Ficou um tempo olhando para o seu reflexo na superfície do vidro sem saber muito bem porque estava ali. Pequenas ondas começaram a surgir como se alguém tivesse atirado uma pedra em um lago de águas calmas: viu então um camaleão e um bobo da corte e uma sacerdotisa antiga e um ladrão. Sabia, no seu íntimo, que todos eram ela.

Tremendo – talvez de frio, talvez naquele estado que precede um colapso nervoso – correu pela casa desequilibrada. Tomou um trago de whiskey sem água ou gelo para se acalmar e sentou na cama, só então percebendo o diário aberto ao seu lado. Ficou ainda mais confusa, pois tinha certeza que o caderno estava guardado dentro de uma gaveta. Não tinha mais certeza de nada, no fim das contas. Não sabia se estava adormecida ou desperta, não conseguia distinguir o real. Talvez tivesse finalmente cedido à curiosidade e experimentado alguma droga alucinógena, considerou por não mais que um momento naquele turbilhão de pensamentos.

Uma brisa de inverno entrou pela janela provocando-lhe calafrios e fazendo com que as páginas se sucedessem uma à outra, como uma animação. Letras corriam e pipocavam pela página até formar uma mensagem em vermelho escarlate. Dizia: “O Fim está próximo e é você a culpada”.

Deu um grito sofrido a abafado, revelando o susto genuíno que a acometera. Aquilo parecia cada vez mais um filme ou uma das revistas de horror que ela costumava ler. Disse a si mesma que NÃO havia assombrações, que NÃO acreditava no sobrenatural. Sua voz saiu da garganta quase sem esforço e, num tom absolutamente inexpressivo, ela falou sozinha.

- Acho que eu estou entrando em colapso... É, estou alucinando.

Colocou apenas um vestido e saiu sem saber bem para onde ia. Podia procurar um hospital e pedir para ser sedada ou ir até a livraria, talvez dona Gertrudes pudesse ajudar. É, é sim. Essa era definitivamente uma boa ideia. Tão boa que ela estufou o peito sem sutien por baixo do vestido e seguiu com passos rápidos e decididos para algumas quadras adiante, onde trabalhava.

Não conseguia raciocinar sobre nenhuma ação ou atitude prática, talvez por isso mesmo nem tenha notado que entrou em um cinema velho até que chegasse à sala de exibição vazia. Era um Western daqueles bem bobos, em que o protagonista durão brigava no bar e pedia uma cerveja morna depois, bem à moda do Novo México. O bonitão com cara de poucos amigos olhou para a tela e pergunto com um tom amigável.

- Vai aí, parceira?

Clarissa olhou para os lados, mas – como temia – estava só no cinema. A tela escureceu por um instante e então começou um novo filme: tratava-se de uma história sobre um circo que era comandado por um velho palhaço com poderes demoníacos. Ela não entendeu muito bem, mas parece que o grande barato dos vilões era transformar os pobres habitantes da cidade em grandes flocos de pipoca. O líder do grupo nefasto foi derrotado, porém a última cena dava a entender que ele havia encarnado novamente em um adorável palhaço em uma terra distante.

Novo corte. Dessa vez é exibido um desenho animado com o que parecem ser versões fajutas do Gato Felix e do Topo Gigio na Idade Média. O gato vadio se apaixona pela mulher de um nobre senhor de terras. A donzela não resiste aos encantos do felino trovador e se parece, como Clarissa a definiu, com um amálgama da Betty Boop e da Monalisa (bem bonita, por sinal, apesar de não sorrir muito).

O marido corno afirma que o bichano está enfeitiçando sua esposa. Logo depois, Felix-fake é capturado por Topo Gigio-fake e sua turminha da pesada, todos devidamente trajados com os símbolos da Inquisição. Os ratinhos pregam uma chaga em cada têmpora do gato em nome de nosso senhor Jesus Cristo, acompanhados pelas risadas da plateia fictícia. Nosso heroi não morre, o que prova para os clérigos a existência de um pacto com o demônio. Socos e chutes fazem “toing” quando acertam Felix-fake, arrancando mais “hahahas” previamente gravados e automaticamente reproduzidos antes da fogueira deixar o rabo de nosso Don Juan de bigodes parcialmente carbonizado.

Por fim, o condenado era chamado de “bruxo”, “judeu” e “sem mãe” quando começa a recitar palavras arcanas – imensas em antiguidade e poder – no ritmo de “Thriller”, de Michael Jackson...

Estática. Através do chuvisco saem da tela o Palhaço-Ninja-Zumbi que parecia uma versão sombria do Ronald McDonald, o Felix-fake e uma cabeça saltitante de um daqueles apaches de Hollywood. O felino estava vestido como Gandalf e exibia uma cicatriz em N na testa, além de trazer consigo uma bolsa muito parecida com o chapéu do Presto de “Caverna do Dragão”; O índio – ou o que restou dele – tinha dentes de chacal e uma flecha atravessava o crânio de uma orelha à outra, deixando de fora apenas a ponta de madeira e uma pena vermelha. As mãos de Clarissa sufocam um grito de medo, o estômago cola no acento.

Os três tipos bizarros começam a caminhar na direção da jovem com sorrisos ameaçadores. Começa então mais um filme, "Alice no País da Putaria", pelo enunciado ao estilo cinema mudo. A aterrorizada espectadora olha para os lados buscando uma rota de fuga, mas todas as saídas sumiram por um passe de mágica.

Enquanto seus dois comparsas saltavam de fileira em fileira, Ronald DeathDonald - era assim que Clarissa se referia a ele em seus pensamentos - falava em seu sapato-fone.

- Tudo limpeza, chefe. Certo, chefe. Já estamos com a encomenda! – a voz era irritante e lembrava um daqueles mafiosos que faziam “servicinhos” para os Gangsters das histórias noir.

O filme continuava correndo e uma morena sexy gemia para um homem vestido de coelho. "Entra na minha toca!", ela dizia, "Isso, me faz cavalgar como sua vaqueira! Sim, baby, sim!" e fazia amor com o mascote de maneira selvagem. A essa altura Clarissa estava recostada no fundo da sala. Ela ria compulsiva e desesperadamente, numa crise de pânico de dar dó. O apache vinha por um lado e o Felix-fake pelo outro, encurralando-a no meio da fileira. Ronald DeathDonald exibiu um gancho no lugar da mão esquerda que havia passado despercebido até então, e o brilho da lâmina afiada apenas livrou a vítima de sua paralisia. A menina correu e conseguiu saltar sobre a última fileira de poltronas, mas o gato tirou de sua bolsa um laço-da-verdade que brilhava como se fosse de ouro e a capturou.

Tudo parecia perdido quando o hálito quente dos perseguidores tocou a face de Clarissa. "A gracinha trapaceira", disse Felix-Fake em tom de deleite, "demorou, mas nós a achamos, sua traidorazinha de merda". O apache saltitava em volta dos pés dela e perguntava aos outros se ele podia dar só uma mordidinha naquelas pernas suculentas. A despeito dos apelos de seu parceiro sem corpo, Ronald DeathDonald tomou a dianteira da situação e falou leeeeeeentamente.

- O chefe a quer viva e inteira, rapazes. Mas ele me deu a honra de deixar uma marquinha discreta nesse rostinho. Quem não sabe de quem se trata até acredita nessa expressão de pavor, não é? - E então ergueu o braço esquerdo, a sombra deixando apenas um olho vermelho à mostra. Clarissa gritou por auxílio, mas não tinha esperança de obtê-lo.

Sem que ninguém percebesse, um bravo mosqueteiro surgiu em cena e parou o golpe com seu sabre.

- Largue ela, vilão! Milady, minha senhora... Não tema, eu, Robin Hulk, esmagarei essa horda de pequenos demônios do Show Bizz! - Puxou Clarissa pelo braço e a empurrou para traz de si delicadamente. Ainda sim, ela teria caído se Alice - agora vestida com sinta-liga e corselet pretos, mas ainda extenuada por sua última cena - não a tivesse segurado.

- Vamos, minha rainha, não é seguro ficar mais neste lugar! - Tirou um toco de giz branco ACME do decote e desenhou uma passagem no veludo negro. Depois disso, tomou distância e correu a toda velocidade, trazendo consigo Sua Majestade. Robin Hulk logo as seguiu, não sem antes impedir que fossem seguidos. Surgiram em um arquivo de fitas de vídeo e películas muito antigo e aparentemente abandonado.

- Que porra de lugar é esse? Quem são vocês? O que fizeram com a minha vida, droga? - Clarissa senta no chão, as costas apoiadas na parede cheia de mofo. Ela abraça as próprias pernas e chora tanto que seu queixo bate como se ela estivesse congelando.

- Mui impressionante, minha bela Alice. Ela realmente não se lembra de nada... – O espadachim embainhou sua arma manchada de maquiagem circense e pêlo escuro.

- É verdade, Robin.

- Falem logo ou me deixem ir, chega de comentários enigmáticos por hoje, ok? – O medo parecia ter se transfigurado em raiva no coração da jovem.

- Seu desejo é uma ordem, minha ama. São muitas e difíceis perguntas, como a senhora nos advertiu que seria – Alice fez uma pausa buscando as melhores palavras – Acho melhor ser direta. Esse lugar é o arquivo de uma produtora de vídeo há muito abandonada, aqui é seguro por enquanto. Nós somos seus mais fiéis e humildes servos, se me permite a ousadia...
Alice hesita, as palavras ficam presas na garganta como se resistissem ao contato com o mundo exterior. Sem saber o que fazer, ela olha para o companheiro de costumes verdes de época, que balança a cabeça negativamente.

- Que mistério idiota é esse! Falem de uma vez! – o grito altivo percorreu todo o porão.

- Tudo bem, isso não vai ser fácil, mas – Robin faz uma pausa dramática bem canastrona – a senhorita é uma Deusa.

terça-feira, 28 de julho de 2009

Supermercado

(Rio de Janeiro, 22 de novembro de 2007)

Hoje eu acordei mais cedo do que de costume. Saí e fui ao supermercado, o lugar onde se adquire ilusões a varejo. Precisava fazer compras...

Comprei minhas conversas em lata, meus sonhos em conserva e meu sorrisos instantâneos: três minutos na água quente, sabores amarelo, forçado ou sem graça. Renovei meus estoques de educação a metro, de boas maneiras. Tomei um purgante para poder engolir sapos de maneira mais eficiente.

Na sessão de produtos de limpeza arrumei mais caras de paisagem por um bom preço. Elas são úteis, tem mil e uma utilidades. Olho para a placa acima de meu nariz. “Cama, Mesa e Banho”, ela diz.

Esta é a mais interessante! Por incrível que pareça, achei uma colcha de retalhos com todas as impressões pré-fabricadas que eu necessito para viver em sociedade. Estava estafado depois de uma manhã inteira fazendo compras. Naquele mercado se vendia tudo... Mas houve uma coisa que eu não consegui achar.

Dirigi-me ao funcionário mais próximo e perguntei: “Onde eu encontro esperança?”. Resposta? Silêncio.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

A Fuga

(Rio de Janeiro, 22 de julho de 2009. 2a edição)

A prisão enorme estava quase vazia. Seus pouquíssimos detentos, que podiam ser contados nos dedos das mãos, escolheram ficar todos no mesmo pavilhão, pois assim não se sentiam tão sós. Na prisão não havia grades nem (aparentemente) funcionários e - embora não soubessem explicar como - parecia totalmente automatizada, regida quase por um passe de mágica.

Na hora de sempre as celas foram abertas e os prisioneiros puderam sair para o banho de sol. Chegando ao pátio - que mais parecia um bosque com suas árvores copadas, seus arbustos e a grama alta, fofa e muito verde - sentaram-se à sombra de uma macieira. Um deles, ainda de pé, olhou para cima e franziu o queixo, balançando a cabeça satisfeito.

- É... Eu tinha razão, são 10 horas da manhã! - O homem parecia um inglês: muito alto e magro, o cabelo preto penteado para trás com gel e orelhas de abano. A pele era de um branco quase cadavérico, exceto nas bochechas e no nariz, vermelhos.

- Ah, isso de novo! - Bradaram dois ou três em sinal de protesto.

- É claro que estou certo, ora! Quem de vocês é melhor nisso do que...

- Do que você, Soberba! Tenho fé que um dia você mude. - Disse a jovenzinha simpática com trajes colegiais, interrompendo o companheiro.

Uma mulher de óculos e trejeitos desengonçados cutucou o ombro da menina com a ponta da unha, evitando maiores contatos, e a interpelou.

- Esperança, mas e se Soberba estiver certo? - Fez uma pausa e gaguejou antes de continuar - Pegar sol depois das dez pode nos dar uma insolação. E pior! Nós pegamos sol todos os dias nesse mesmo horário, podemos desenvolver um câncer de pele, ouviram bem?

O tom dela já beirava o desespero.

- Câncer de Pele!

Sem mais nem menos um homenzinho careca e barrigudo como um duende começou a saltar e dançar em volta dos outros, assobiando uma melodia alegre.

- O sol do Cão/ Dá insolação/ E o que nos impele/ É o câncer de pele!

A mulher o questiona, totalmente dominada pelo pânico.

- Como você pode ignorar algo assim? Não vê que pode morrer? Paixão, Vício... Alguém diga para ele!

- Por que está estranhando algo assim, mulher? - Perguntou Vício acendendo folhas com um fósforo - Loucura é o único que não se importa com você, Doença!

- Será que podemos parar com isso? - Gritou de maneira afetada uma jovem loira, alta e muito bonita que usava óculos escuros o tempo todo.

- Tudo bem Paixão, mas seja mais paciente... Não é como se algum de nós tivesse mesmo horários a cumprir - argumentou Esperança.

Paixão não olhou para ela. Apalpou o gramado e só então se virou mais ou menos na direção da menina.

- Eu, dada minha natureza, sou fugaz, impulsiva. Não sei esperar... - Ela sorriu, marota, e mexeu em seus óculos - E sou cega!

Os presos se sentaram no gramado e o sol quente os iluminou a todos. Comeram maçãs do pé (Loucura preferia a casca e, especialmente, os bichos), colheram flores e papearam despreocupadamente, como sempre faziam.

Quando todos se reuniram novamente, a menina Esperança lançou um questionamento que havia muito a inquietava.

- Por que eu estou aqui? Quando vão me libertar?

Os outros se entreolharam, com a exceção de Loucura, que parecia alheio à conversa. Depois de um tempo em silêncio, Soberba se manifestou.

- Nem eu sei exatamente, querida. Como uma coisa tão boa pode estar entre nós é um mistério até mesmo para mim, seguramente o mais capacitado aqui para lhe responder.

- Talvez nós tenhamos alguma coisa contagiosa ou algo assim! - Doença parecia eufórica agora - Se eu bem me lembro, eles nos trancaram aqui faz muito tempo e disseram que só assim as pessoas lá fora viveriam felizes.

- É verdade! Eu já nem me lembrava mais, quanto tempo tem isso? Eu já não sei. Mas o fato é: não há meio de sair daqui. Antes de você, a mais nova entre nós, chegar aqui, já havíamos tentado de tudo, mas nada parecia adiantar. Lá fora só há o vazio e por mais que caminhássemos sempre acabávamos voltando para cá. - Paixão mostra uma estranha serenidade.

- Mas tem que haver um jeito! Eu não acredito que vocês possam desistir assim. Vou pensar em alguma coisa...

Eles continuaram suas rotinas monótonas até anoitecer. Esperança, durante todo o restante do dia, estava meditativa e os outros não quiseram importuná-la em sua cela. Chegou a hora do jantar; todos já estavam reunidos no refeitório comendo uma sopa de repolho quando a menina entrou ofegante e visivelmente alterada.

- Eureka! Eureka! Eu já sei o que devemos fazer! - Ela segurou nas mãos de Loucura, que estava de pé, e os dois rodopiaram como em uma cantiga de roda.

- Mas se nem eu consegui encontrar uma solução, como você poderia? - Perguntou Soberba intrigado.

- Isso é porque sempre mentiram para você assim como mentiram para mim e para todo mundo! Mas agora eu sei a verdade!

Todos fitaram a menina com grande expectativa. Nem precisaram perguntar a resposta para aquele terrível enigma que os ocupou em vão por infindáveis tardes, pois ela começou a falar novamente.

- Sempre nos disseram que enquanto há vida, há esperança, certo? Mas é justamente esse o nosso grilhão! Nós não precisamos de guardas porque estamos presos a esse monte de carne! Nossa cela somos nós mesmos!

A confusão era flagrante: Soberba coçava a cabeça, Paixão deixou seus óculos caírem, Vício - glutão compulsivo - parou de comer. Doença foi a única que teve coragem para seguir adiante.

- Continue... - Disse para a garota, já roendo as unhas de ansiedade.

- Meu plano é o seguinte: todos nós nos matamos e eu tenho certeza que sairemos daqui. Como fantasmas, atravessaremos essas paredes e viveremos o mundo a nossa volta!

- Mas e se der errado? E se estivermos jogando nossa vida fora em vão? Não temos nenhuma garantia... - Paixão contrapôs-se falando alto, irritada - Pode não parecer, mas eu gosto mais de mim do que de qualquer outra coisa e não quero arriscar meu lindo pescocinho por uma idéia maluca!

- A única garantia que nós temos é esse castigo eterno...

A menina então deixou o local e ninguém disse mais nada até o banho de sol no dia seguinte. Todos eles foram procurar Esperança.

- Bom, menina... Esperamos que você tenha razão, porque nós concordamos! - Soberba falou em nome de todos - De fato nenhum de nós aguenta mais ficar aqui e nem merece estar cativo só pelo fato de existir.

- Muito bem, então. Vício, você que cavuca esse jardim o tempo todo, sabe se tem alguma planta muito venenosa aqui?

- Sim, minha cara! - Seus olhos brilharam em alegria e êxtase - temos aqui uma fruta parecida com uma pêra, só que roxa. A fumaça da sua casca dá o maior barato, mas comê-la é morte certa e instantânea.

A partir daí tudo aconteceu muito rápido. Vício colheu as frutas como deve ser e, sentados em círculo, eles se prepararam para o ato fatal. Antes, contudo, Esperança disse as últimas palavras.

- Muito bem, meus amigos! Já é hora, deixaremos a vida para encontrar um lugar no mundo. A morte não representará um fim, mas sim um meio e a eternidade será nossa guia.

Comeram.

Em instantes, Paixão, Vício, Doença e Soberba caíram. As bocas fumegando o roxo da morte. Com os olhos cheios d’água, Esperança perguntou para Loucura.

- Por que não funcionou para nós? Isso não é justo! - A menina coçava os olhos.

- Bom, tudo que sei é que não há loucura na morte. E falando em morte, você deveria saber que seria a última a morrer, não?

Ele se levantou e caminhou até Esperança. Em seguida, enxugou seus olhos e beijou sua testa. Não parecia mais o bobo imprevisível de antes; agora exibia uma sabedoria e um mistério que ela nunca sonhara em ver naqueles olhos cor de avelã. Apontou para o portão da cadeia, que estava aberto. Emanava uma luz dourada da passagem e o som de mil trombetas cruzava o ar. Loucura apontou para ele.

- Olhe, Esperança! Lá se vão nossos amigos.

A menina se beliscou para ver se não estaria sonhando. Todos eles, pouco antes de cruzarem aquela que seria a fronteira final, deram seu último adeus e, em seguida, viraram uma nuvem multicolorida que mais parecia a aurora boreal.

- O que está acontecendo, Loucura?

- Do pó viestes, ao pó voltarás... Também é assim conosco. Mas não pense que esse é o fim deles, minha princesa. Eles estarão presentes em tudo que é vivo daqui para frente. Não serão um, mas todos! Agora eu tenho que ir, esperei esse dia por muito tempo...

Loucura começou a caminhar para o portão. Esperança ficou imóvel por um tempo, mas logo que retomou a consciência correu atrás dele e começou a falar apressadamente.

- Pera aí, você não morreu! Não pode ir!

Ele parou, virou-se para ela e afagou seus cabelos macios. A menina o abraçou, seu rosto tomado de lágrimas batia na barriga do amigo.

- Por favor, não me deixe! Eu não quero ficar aqui sozinha! Tudo menos isso!

Ele parou por um tempo para pensar e então falou na altura do ouvido dela. Não mais que um sussurro saiu de sua boca.

- Vou te contar um segredinho... Eu não estou vivo nem morto. Eu sou o limiar entre vida e morte... Lembra do vazio sobre o qual falaram ontem? O lá de fora!

Esperança fez que sim com a cabeça.

- Aquele era eu. Eu poderia levá-la, mas você tem que ficar aqui. Isso não será mais uma prisão, mas sim um relicário. As pessoas vão precisar de alguém em quem se apegar daqui para frente e essa é você. Vão lhe chamar por muitos nomes e fazer muitas coisas em sua defesa, boas e más. Mas quando eles dormirem, quando eles rezarem, quando eles sonharem acordados... Não importa, é você que eles virão visitar. Mantenha a casa em ordem, ok?

Dito isso, ele saiu. Ao contrário dos outros não se desfez: atravessou o portão, deu mais um passo e olhou para trás, em direção à placa afixada no pórtico acima.

Estava escrito: "Caixa de Pandora - Abandonai toda a esperança, você que entra".

Loucura riu, sabendo que só ele podia apreciar a ironia.


***

Sobre "A Fuga"

Foi bem engraçado escrever esse conto, porque ele foi uma verdadeira antítese da maneira com que eu costumo construir minhas histórias. Tudo começou lendo o conto "A vez de outubro", do Neil Gaiman, cujos personagens são os meses do ano. Achei verdadeiramente encantador e pensei: por que não usar representações antropomórficas também?

Alguns dias depois, navegando pela Wikipedia (meu vício!) fui parar num artigo sobre a caixa de Pandora e tive certeza de que essa era A história a se contar. Como fazer era muito vago: sabia que o cenário seria uma prisão que representaria a caixa, que os sentimentos nela contidos seriam personagens e que, no final, a Esperança deveria ficar.

A escolha dos "personagens" também não foi aleatória. Pensei primeiramente que Loucura poderia ser uma espécie de Profeta Gentileza, que teria um jeito todo próprio de se expressar, embora no fim das contas ele tenha sido mais um Gandalf do que isso. Doença e Soberba eram, sobretudo, o alívio comigo que ajudaria na empatia com aquele grupo e os demais me pareceram bastante representativos também.

Curiosamente, minha idéia inicial era que nossos amigos conseguissem escapar sozinhos, sãos e salvos, mas empaquei no primeiro terço de história durante quase duas semanas, até que um belo dia resolvi que acabaria de um jeito ou de outro, por consideração aos personagens. Veio a fagulha de brincar com a máxima "enquanto há vida, há esperança" e que aconteceu depois é história.

Foi muito prazeroso trabalhar com esses personagens, pois é muito mais difícil caracterizá-los do que a pessoas comuns. Exatamente por não serem humanos eles não podem ter a mesma profundidade, no meu modo de ver. Teriam que ser, de certa forma, estereótipos inteligentes (se é que isso é possível). Aí vieram associações bobas como Paixão cega, um Soberba feio ou uma Esperança jovem e suicida. Pretendo voltar a trabalhar com alguns desses personagens de novo um dia, acho que ainda há algumas coisas para contar sobre eles.

É isso, gente! Até breve!