Era só mais um fim de dia comum na vida de Clarissa. Ela volta para casa sem pressa, como quem já não quer chegar. Já são quase 11 da noite, mais tarde que o de costume porque teve de ajudar dona Gertrudes no balanço da livraria. E não se importava com o serão, pra falar a verdade.
A jovem para por um instante ao se ver no espelho do corredor do prédio. Está quatro ou cinco quilos acima do peso; já tem 19, mas as feições um tanto quanto pueris mostram que ela ainda aguarda seu desabrochar.
Como sempre, a primeira coisa que faz ao entrar é colocar a comida do cachorro, sua única companhia no quarto-e-sala diminuto. O bichinho faz festa, Clarissa o presenteia com um afago não mais que protocolar e ambos vivem felizes assim. Em seguida, come um pouco de salada contra a vontade, pois as verduras já estavam queimadas e com “gosto de geladeira”, aquele sabor característico das coisas que já deveriam ter ido para a lata do lixo.
Preocupava-se em levar uma vida saudável, mas alimentava um vício: o café. Clarissa não dorme muito. Cada viagem pelo onírico tem sido pior que a anterior, reservando apenas pesadelos repletos de terror e imagens sem sentido, por isso o líquido negro – forte e doce como ela apreciava – era seu elixir na luta contra os braços de Morfeu. Da mesma forma, costumava beber mais do que o aconselhável, uma vez que a embriagues parecia expulsar seus demônios interiores temporariamente. Tinha bem poucos amigos, três deles – Johnny Walker, Jack Daniels e José Cuervo – estavam à vista sobre a mesa de canto. Entretanto, ela escolheu não beber. Não havia tempo para curar uma ressaca, concluiu, era melhor deixar estar.
Resolveu, não antes de acalorados debates consigo mesma, pensar no que fazer a seguir. Queria desenhar quadrinhos, mas o caminho mais fácil era cursar administração e trabalhar no escritório com o pai. Pensou também em mochilar, viver de parada em parada colhendo estórias para os livros que, sabia, jamais iria escrever. Olhou para o relógio em forma de Garfield na parede, que já anunciava um novo dia com seus ponteiros cor-de-abóbora. A partir deste instante a menina de olhos de mel só lutava, fugindo insistentemente do inevitável. Não sabe em que momento seus olhos se fecharam, tampouco quando sua mente se abriu às perversões de sabe-se lá o quê. Era o seu pior e mais frequente pesadelo se repetindo uma vez mais...
Ela estava amarrada a um mastro ou algo que o valha e um homem vestido em sombras lhe açoitava sadicamente. Clarissa sentia os espinhos entrando como dentes em seu corpo, levando punhados de carne e sangue a cada novo golpe, mas aquela não era ela - ou melhor, nem era uma mulher – pois podia sentir, completamente nua como estava, as volumosas bolas e o cacete enorme e duro como aço – que parecia excitado com aquilo tudo – balançando por conta do impacto das agressões. O vulto maligno, não mais que uma silhueta na luz do poente sombrio, vociferava injurias variadas e lhe chamada de “Senhor dos Embustes” e “Pai de Todos os Estratagemas” e “Ardil Encarnado”.
Acordou sobressaltada, como se emergisse depois de quase se afogar. Desta vez, notou a calcinha molhada por baixo da camisola e o fato de quase ter chegado ao orgasmo com aquele sonho terrível e enigmático levou-lhe às lágrimas, num misto de asco e autopiedade. Não conseguia denotar onde um sentimento acabava e outro começava, mas sentia-se imunda e patética.
Tomou uma ducha rápida e gelada, esfregando seu sexo até quase ferir-se. Saiu, úmida naquele dia frio, e parou nua em frente ao espelho. Ficou um tempo olhando para o seu reflexo na superfície do vidro sem saber muito bem porque estava ali. Pequenas ondas começaram a surgir como se alguém tivesse atirado uma pedra em um lago de águas calmas: viu então um camaleão e um bobo da corte e uma sacerdotisa antiga e um ladrão. Sabia, no seu íntimo, que todos eram ela.
Tremendo – talvez de frio, talvez naquele estado que precede um colapso nervoso – correu pela casa desequilibrada. Tomou um trago de whiskey sem água ou gelo para se acalmar e sentou na cama, só então percebendo o diário aberto ao seu lado. Ficou ainda mais confusa, pois tinha certeza que o caderno estava guardado dentro de uma gaveta. Não tinha mais certeza de nada, no fim das contas. Não sabia se estava adormecida ou desperta, não conseguia distinguir o real. Talvez tivesse finalmente cedido à curiosidade e experimentado alguma droga alucinógena, considerou por não mais que um momento naquele turbilhão de pensamentos.
Uma brisa de inverno entrou pela janela provocando-lhe calafrios e fazendo com que as páginas se sucedessem uma à outra, como uma animação. Letras corriam e pipocavam pela página até formar uma mensagem em vermelho escarlate. Dizia: “O Fim está próximo e é você a culpada”.
Deu um grito sofrido a abafado, revelando o susto genuíno que a acometera. Aquilo parecia cada vez mais um filme ou uma das revistas de horror que ela costumava ler. Disse a si mesma que NÃO havia assombrações, que NÃO acreditava no sobrenatural. Sua voz saiu da garganta quase sem esforço e, num tom absolutamente inexpressivo, ela falou sozinha.
- Acho que eu estou entrando em colapso... É, estou alucinando.
Colocou apenas um vestido e saiu sem saber bem para onde ia. Podia procurar um hospital e pedir para ser sedada ou ir até a livraria, talvez dona Gertrudes pudesse ajudar. É, é sim. Essa era definitivamente uma boa ideia. Tão boa que ela estufou o peito sem sutien por baixo do vestido e seguiu com passos rápidos e decididos para algumas quadras adiante, onde trabalhava.
Não conseguia raciocinar sobre nenhuma ação ou atitude prática, talvez por isso mesmo nem tenha notado que entrou em um cinema velho até que chegasse à sala de exibição vazia. Era um Western daqueles bem bobos, em que o protagonista durão brigava no bar e pedia uma cerveja morna depois, bem à moda do Novo México. O bonitão com cara de poucos amigos olhou para a tela e pergunto com um tom amigável.
- Vai aí, parceira?
Clarissa olhou para os lados, mas – como temia – estava só no cinema. A tela escureceu por um instante e então começou um novo filme: tratava-se de uma história sobre um circo que era comandado por um velho palhaço com poderes demoníacos. Ela não entendeu muito bem, mas parece que o grande barato dos vilões era transformar os pobres habitantes da cidade em grandes flocos de pipoca. O líder do grupo nefasto foi derrotado, porém a última cena dava a entender que ele havia encarnado novamente em um adorável palhaço em uma terra distante.
Novo corte. Dessa vez é exibido um desenho animado com o que parecem ser versões fajutas do Gato Felix e do Topo Gigio na Idade Média. O gato vadio se apaixona pela mulher de um nobre senhor de terras. A donzela não resiste aos encantos do felino trovador e se parece, como Clarissa a definiu, com um amálgama da Betty Boop e da Monalisa (bem bonita, por sinal, apesar de não sorrir muito).
O marido corno afirma que o bichano está enfeitiçando sua esposa. Logo depois, Felix-fake é capturado por Topo Gigio-fake e sua turminha da pesada, todos devidamente trajados com os símbolos da Inquisição. Os ratinhos pregam uma chaga em cada têmpora do gato em nome de nosso senhor Jesus Cristo, acompanhados pelas risadas da plateia fictícia. Nosso heroi não morre, o que prova para os clérigos a existência de um pacto com o demônio. Socos e chutes fazem “toing” quando acertam Felix-fake, arrancando mais “hahahas” previamente gravados e automaticamente reproduzidos antes da fogueira deixar o rabo de nosso Don Juan de bigodes parcialmente carbonizado.
Por fim, o condenado era chamado de “bruxo”, “judeu” e “sem mãe” quando começa a recitar palavras arcanas – imensas em antiguidade e poder – no ritmo de “Thriller”, de Michael Jackson...
Estática. Através do chuvisco saem da tela o Palhaço-Ninja-Zumbi que parecia uma versão sombria do Ronald McDonald, o Felix-fake e uma cabeça saltitante de um daqueles apaches de Hollywood. O felino estava vestido como Gandalf e exibia uma cicatriz em N na testa, além de trazer consigo uma bolsa muito parecida com o chapéu do Presto de “Caverna do Dragão”; O índio – ou o que restou dele – tinha dentes de chacal e uma flecha atravessava o crânio de uma orelha à outra, deixando de fora apenas a ponta de madeira e uma pena vermelha. As mãos de Clarissa sufocam um grito de medo, o estômago cola no acento.
Os três tipos bizarros começam a caminhar na direção da jovem com sorrisos ameaçadores. Começa então mais um filme, "Alice no País da Putaria", pelo enunciado ao estilo cinema mudo. A aterrorizada espectadora olha para os lados buscando uma rota de fuga, mas todas as saídas sumiram por um passe de mágica.
Enquanto seus dois comparsas saltavam de fileira em fileira, Ronald DeathDonald - era assim que Clarissa se referia a ele em seus pensamentos - falava em seu sapato-fone.
- Tudo limpeza, chefe. Certo, chefe. Já estamos com a encomenda! – a voz era irritante e lembrava um daqueles mafiosos que faziam “servicinhos” para os Gangsters das histórias noir.
O filme continuava correndo e uma morena sexy gemia para um homem vestido de coelho. "Entra na minha toca!", ela dizia, "Isso, me faz cavalgar como sua vaqueira! Sim, baby, sim!" e fazia amor com o mascote de maneira selvagem. A essa altura Clarissa estava recostada no fundo da sala. Ela ria compulsiva e desesperadamente, numa crise de pânico de dar dó. O apache vinha por um lado e o Felix-fake pelo outro, encurralando-a no meio da fileira. Ronald DeathDonald exibiu um gancho no lugar da mão esquerda que havia passado despercebido até então, e o brilho da lâmina afiada apenas livrou a vítima de sua paralisia. A menina correu e conseguiu saltar sobre a última fileira de poltronas, mas o gato tirou de sua bolsa um laço-da-verdade que brilhava como se fosse de ouro e a capturou.
Tudo parecia perdido quando o hálito quente dos perseguidores tocou a face de Clarissa. "A gracinha trapaceira", disse Felix-Fake em tom de deleite, "demorou, mas nós a achamos, sua traidorazinha de merda". O apache saltitava em volta dos pés dela e perguntava aos outros se ele podia dar só uma mordidinha naquelas pernas suculentas. A despeito dos apelos de seu parceiro sem corpo, Ronald DeathDonald tomou a dianteira da situação e falou leeeeeeentamente.
- O chefe a quer viva e inteira, rapazes. Mas ele me deu a honra de deixar uma marquinha discreta nesse rostinho. Quem não sabe de quem se trata até acredita nessa expressão de pavor, não é? - E então ergueu o braço esquerdo, a sombra deixando apenas um olho vermelho à mostra. Clarissa gritou por auxílio, mas não tinha esperança de obtê-lo.
Sem que ninguém percebesse, um bravo mosqueteiro surgiu em cena e parou o golpe com seu sabre.
- Largue ela, vilão! Milady, minha senhora... Não tema, eu, Robin Hulk, esmagarei essa horda de pequenos demônios do Show Bizz! - Puxou Clarissa pelo braço e a empurrou para traz de si delicadamente. Ainda sim, ela teria caído se Alice - agora vestida com sinta-liga e corselet pretos, mas ainda extenuada por sua última cena - não a tivesse segurado.
- Vamos, minha rainha, não é seguro ficar mais neste lugar! - Tirou um toco de giz branco ACME do decote e desenhou uma passagem no veludo negro. Depois disso, tomou distância e correu a toda velocidade, trazendo consigo Sua Majestade. Robin Hulk logo as seguiu, não sem antes impedir que fossem seguidos. Surgiram em um arquivo de fitas de vídeo e películas muito antigo e aparentemente abandonado.
- Que porra de lugar é esse? Quem são vocês? O que fizeram com a minha vida, droga? - Clarissa senta no chão, as costas apoiadas na parede cheia de mofo. Ela abraça as próprias pernas e chora tanto que seu queixo bate como se ela estivesse congelando.
- Mui impressionante, minha bela Alice. Ela realmente não se lembra de nada... – O espadachim embainhou sua arma manchada de maquiagem circense e pêlo escuro.
- É verdade, Robin.
- Falem logo ou me deixem ir, chega de comentários enigmáticos por hoje, ok? – O medo parecia ter se transfigurado em raiva no coração da jovem.
- Seu desejo é uma ordem, minha ama. São muitas e difíceis perguntas, como a senhora nos advertiu que seria – Alice fez uma pausa buscando as melhores palavras – Acho melhor ser direta. Esse lugar é o arquivo de uma produtora de vídeo há muito abandonada, aqui é seguro por enquanto. Nós somos seus mais fiéis e humildes servos, se me permite a ousadia...
Alice hesita, as palavras ficam presas na garganta como se resistissem ao contato com o mundo exterior. Sem saber o que fazer, ela olha para o companheiro de costumes verdes de época, que balança a cabeça negativamente.
- Que mistério idiota é esse! Falem de uma vez! – o grito altivo percorreu todo o porão.
- Tudo bem, isso não vai ser fácil, mas – Robin faz uma pausa dramática bem canastrona – a senhorita é uma Deusa.
A jovem para por um instante ao se ver no espelho do corredor do prédio. Está quatro ou cinco quilos acima do peso; já tem 19, mas as feições um tanto quanto pueris mostram que ela ainda aguarda seu desabrochar.
Como sempre, a primeira coisa que faz ao entrar é colocar a comida do cachorro, sua única companhia no quarto-e-sala diminuto. O bichinho faz festa, Clarissa o presenteia com um afago não mais que protocolar e ambos vivem felizes assim. Em seguida, come um pouco de salada contra a vontade, pois as verduras já estavam queimadas e com “gosto de geladeira”, aquele sabor característico das coisas que já deveriam ter ido para a lata do lixo.
Preocupava-se em levar uma vida saudável, mas alimentava um vício: o café. Clarissa não dorme muito. Cada viagem pelo onírico tem sido pior que a anterior, reservando apenas pesadelos repletos de terror e imagens sem sentido, por isso o líquido negro – forte e doce como ela apreciava – era seu elixir na luta contra os braços de Morfeu. Da mesma forma, costumava beber mais do que o aconselhável, uma vez que a embriagues parecia expulsar seus demônios interiores temporariamente. Tinha bem poucos amigos, três deles – Johnny Walker, Jack Daniels e José Cuervo – estavam à vista sobre a mesa de canto. Entretanto, ela escolheu não beber. Não havia tempo para curar uma ressaca, concluiu, era melhor deixar estar.
Resolveu, não antes de acalorados debates consigo mesma, pensar no que fazer a seguir. Queria desenhar quadrinhos, mas o caminho mais fácil era cursar administração e trabalhar no escritório com o pai. Pensou também em mochilar, viver de parada em parada colhendo estórias para os livros que, sabia, jamais iria escrever. Olhou para o relógio em forma de Garfield na parede, que já anunciava um novo dia com seus ponteiros cor-de-abóbora. A partir deste instante a menina de olhos de mel só lutava, fugindo insistentemente do inevitável. Não sabe em que momento seus olhos se fecharam, tampouco quando sua mente se abriu às perversões de sabe-se lá o quê. Era o seu pior e mais frequente pesadelo se repetindo uma vez mais...
Ela estava amarrada a um mastro ou algo que o valha e um homem vestido em sombras lhe açoitava sadicamente. Clarissa sentia os espinhos entrando como dentes em seu corpo, levando punhados de carne e sangue a cada novo golpe, mas aquela não era ela - ou melhor, nem era uma mulher – pois podia sentir, completamente nua como estava, as volumosas bolas e o cacete enorme e duro como aço – que parecia excitado com aquilo tudo – balançando por conta do impacto das agressões. O vulto maligno, não mais que uma silhueta na luz do poente sombrio, vociferava injurias variadas e lhe chamada de “Senhor dos Embustes” e “Pai de Todos os Estratagemas” e “Ardil Encarnado”.
Acordou sobressaltada, como se emergisse depois de quase se afogar. Desta vez, notou a calcinha molhada por baixo da camisola e o fato de quase ter chegado ao orgasmo com aquele sonho terrível e enigmático levou-lhe às lágrimas, num misto de asco e autopiedade. Não conseguia denotar onde um sentimento acabava e outro começava, mas sentia-se imunda e patética.
Tomou uma ducha rápida e gelada, esfregando seu sexo até quase ferir-se. Saiu, úmida naquele dia frio, e parou nua em frente ao espelho. Ficou um tempo olhando para o seu reflexo na superfície do vidro sem saber muito bem porque estava ali. Pequenas ondas começaram a surgir como se alguém tivesse atirado uma pedra em um lago de águas calmas: viu então um camaleão e um bobo da corte e uma sacerdotisa antiga e um ladrão. Sabia, no seu íntimo, que todos eram ela.
Tremendo – talvez de frio, talvez naquele estado que precede um colapso nervoso – correu pela casa desequilibrada. Tomou um trago de whiskey sem água ou gelo para se acalmar e sentou na cama, só então percebendo o diário aberto ao seu lado. Ficou ainda mais confusa, pois tinha certeza que o caderno estava guardado dentro de uma gaveta. Não tinha mais certeza de nada, no fim das contas. Não sabia se estava adormecida ou desperta, não conseguia distinguir o real. Talvez tivesse finalmente cedido à curiosidade e experimentado alguma droga alucinógena, considerou por não mais que um momento naquele turbilhão de pensamentos.
Uma brisa de inverno entrou pela janela provocando-lhe calafrios e fazendo com que as páginas se sucedessem uma à outra, como uma animação. Letras corriam e pipocavam pela página até formar uma mensagem em vermelho escarlate. Dizia: “O Fim está próximo e é você a culpada”.
Deu um grito sofrido a abafado, revelando o susto genuíno que a acometera. Aquilo parecia cada vez mais um filme ou uma das revistas de horror que ela costumava ler. Disse a si mesma que NÃO havia assombrações, que NÃO acreditava no sobrenatural. Sua voz saiu da garganta quase sem esforço e, num tom absolutamente inexpressivo, ela falou sozinha.
- Acho que eu estou entrando em colapso... É, estou alucinando.
Colocou apenas um vestido e saiu sem saber bem para onde ia. Podia procurar um hospital e pedir para ser sedada ou ir até a livraria, talvez dona Gertrudes pudesse ajudar. É, é sim. Essa era definitivamente uma boa ideia. Tão boa que ela estufou o peito sem sutien por baixo do vestido e seguiu com passos rápidos e decididos para algumas quadras adiante, onde trabalhava.
Não conseguia raciocinar sobre nenhuma ação ou atitude prática, talvez por isso mesmo nem tenha notado que entrou em um cinema velho até que chegasse à sala de exibição vazia. Era um Western daqueles bem bobos, em que o protagonista durão brigava no bar e pedia uma cerveja morna depois, bem à moda do Novo México. O bonitão com cara de poucos amigos olhou para a tela e pergunto com um tom amigável.
- Vai aí, parceira?
Clarissa olhou para os lados, mas – como temia – estava só no cinema. A tela escureceu por um instante e então começou um novo filme: tratava-se de uma história sobre um circo que era comandado por um velho palhaço com poderes demoníacos. Ela não entendeu muito bem, mas parece que o grande barato dos vilões era transformar os pobres habitantes da cidade em grandes flocos de pipoca. O líder do grupo nefasto foi derrotado, porém a última cena dava a entender que ele havia encarnado novamente em um adorável palhaço em uma terra distante.
Novo corte. Dessa vez é exibido um desenho animado com o que parecem ser versões fajutas do Gato Felix e do Topo Gigio na Idade Média. O gato vadio se apaixona pela mulher de um nobre senhor de terras. A donzela não resiste aos encantos do felino trovador e se parece, como Clarissa a definiu, com um amálgama da Betty Boop e da Monalisa (bem bonita, por sinal, apesar de não sorrir muito).
O marido corno afirma que o bichano está enfeitiçando sua esposa. Logo depois, Felix-fake é capturado por Topo Gigio-fake e sua turminha da pesada, todos devidamente trajados com os símbolos da Inquisição. Os ratinhos pregam uma chaga em cada têmpora do gato em nome de nosso senhor Jesus Cristo, acompanhados pelas risadas da plateia fictícia. Nosso heroi não morre, o que prova para os clérigos a existência de um pacto com o demônio. Socos e chutes fazem “toing” quando acertam Felix-fake, arrancando mais “hahahas” previamente gravados e automaticamente reproduzidos antes da fogueira deixar o rabo de nosso Don Juan de bigodes parcialmente carbonizado.
Por fim, o condenado era chamado de “bruxo”, “judeu” e “sem mãe” quando começa a recitar palavras arcanas – imensas em antiguidade e poder – no ritmo de “Thriller”, de Michael Jackson...
Estática. Através do chuvisco saem da tela o Palhaço-Ninja-Zumbi que parecia uma versão sombria do Ronald McDonald, o Felix-fake e uma cabeça saltitante de um daqueles apaches de Hollywood. O felino estava vestido como Gandalf e exibia uma cicatriz em N na testa, além de trazer consigo uma bolsa muito parecida com o chapéu do Presto de “Caverna do Dragão”; O índio – ou o que restou dele – tinha dentes de chacal e uma flecha atravessava o crânio de uma orelha à outra, deixando de fora apenas a ponta de madeira e uma pena vermelha. As mãos de Clarissa sufocam um grito de medo, o estômago cola no acento.
Os três tipos bizarros começam a caminhar na direção da jovem com sorrisos ameaçadores. Começa então mais um filme, "Alice no País da Putaria", pelo enunciado ao estilo cinema mudo. A aterrorizada espectadora olha para os lados buscando uma rota de fuga, mas todas as saídas sumiram por um passe de mágica.
Enquanto seus dois comparsas saltavam de fileira em fileira, Ronald DeathDonald - era assim que Clarissa se referia a ele em seus pensamentos - falava em seu sapato-fone.
- Tudo limpeza, chefe. Certo, chefe. Já estamos com a encomenda! – a voz era irritante e lembrava um daqueles mafiosos que faziam “servicinhos” para os Gangsters das histórias noir.
O filme continuava correndo e uma morena sexy gemia para um homem vestido de coelho. "Entra na minha toca!", ela dizia, "Isso, me faz cavalgar como sua vaqueira! Sim, baby, sim!" e fazia amor com o mascote de maneira selvagem. A essa altura Clarissa estava recostada no fundo da sala. Ela ria compulsiva e desesperadamente, numa crise de pânico de dar dó. O apache vinha por um lado e o Felix-fake pelo outro, encurralando-a no meio da fileira. Ronald DeathDonald exibiu um gancho no lugar da mão esquerda que havia passado despercebido até então, e o brilho da lâmina afiada apenas livrou a vítima de sua paralisia. A menina correu e conseguiu saltar sobre a última fileira de poltronas, mas o gato tirou de sua bolsa um laço-da-verdade que brilhava como se fosse de ouro e a capturou.
Tudo parecia perdido quando o hálito quente dos perseguidores tocou a face de Clarissa. "A gracinha trapaceira", disse Felix-Fake em tom de deleite, "demorou, mas nós a achamos, sua traidorazinha de merda". O apache saltitava em volta dos pés dela e perguntava aos outros se ele podia dar só uma mordidinha naquelas pernas suculentas. A despeito dos apelos de seu parceiro sem corpo, Ronald DeathDonald tomou a dianteira da situação e falou leeeeeeentamente.
- O chefe a quer viva e inteira, rapazes. Mas ele me deu a honra de deixar uma marquinha discreta nesse rostinho. Quem não sabe de quem se trata até acredita nessa expressão de pavor, não é? - E então ergueu o braço esquerdo, a sombra deixando apenas um olho vermelho à mostra. Clarissa gritou por auxílio, mas não tinha esperança de obtê-lo.
Sem que ninguém percebesse, um bravo mosqueteiro surgiu em cena e parou o golpe com seu sabre.
- Largue ela, vilão! Milady, minha senhora... Não tema, eu, Robin Hulk, esmagarei essa horda de pequenos demônios do Show Bizz! - Puxou Clarissa pelo braço e a empurrou para traz de si delicadamente. Ainda sim, ela teria caído se Alice - agora vestida com sinta-liga e corselet pretos, mas ainda extenuada por sua última cena - não a tivesse segurado.
- Vamos, minha rainha, não é seguro ficar mais neste lugar! - Tirou um toco de giz branco ACME do decote e desenhou uma passagem no veludo negro. Depois disso, tomou distância e correu a toda velocidade, trazendo consigo Sua Majestade. Robin Hulk logo as seguiu, não sem antes impedir que fossem seguidos. Surgiram em um arquivo de fitas de vídeo e películas muito antigo e aparentemente abandonado.
- Que porra de lugar é esse? Quem são vocês? O que fizeram com a minha vida, droga? - Clarissa senta no chão, as costas apoiadas na parede cheia de mofo. Ela abraça as próprias pernas e chora tanto que seu queixo bate como se ela estivesse congelando.
- Mui impressionante, minha bela Alice. Ela realmente não se lembra de nada... – O espadachim embainhou sua arma manchada de maquiagem circense e pêlo escuro.
- É verdade, Robin.
- Falem logo ou me deixem ir, chega de comentários enigmáticos por hoje, ok? – O medo parecia ter se transfigurado em raiva no coração da jovem.
- Seu desejo é uma ordem, minha ama. São muitas e difíceis perguntas, como a senhora nos advertiu que seria – Alice fez uma pausa buscando as melhores palavras – Acho melhor ser direta. Esse lugar é o arquivo de uma produtora de vídeo há muito abandonada, aqui é seguro por enquanto. Nós somos seus mais fiéis e humildes servos, se me permite a ousadia...
Alice hesita, as palavras ficam presas na garganta como se resistissem ao contato com o mundo exterior. Sem saber o que fazer, ela olha para o companheiro de costumes verdes de época, que balança a cabeça negativamente.
- Que mistério idiota é esse! Falem de uma vez! – o grito altivo percorreu todo o porão.
- Tudo bem, isso não vai ser fácil, mas – Robin faz uma pausa dramática bem canastrona – a senhorita é uma Deusa.
Só agora tive tempo de ler. Uau! Cada vez melhor, como sempre previ. Lembra aquele seu lado sombrio, acho que esse é um ótimo exorcismo para ele! Muito excelente seu texto (sem exageros linguísticos que não sejam justificados). Você não pode desanimar nunca, porque com o seu talento você vai muito longe! Let's go Little genius!
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